Há algum tempo perdi minha avó. Japonesa, teve seu cerimonial de despedida típico budista. Se a dor era inegociável, tentei tirar qualquer aprendizado da situação. Eu estava num tempo budista, com monges e todo aquele aparato de coisas que imagino que um lugar com monges deva ter por pré-requisito.
Cristão, tudo me era não-normal. Mas por outro lado, milito a favor das culturas, do Fator Melquesedeque, da graça comum. Lá no fundo eu sentei e tentei perceber cada detalhe. Fechei os olhos quando os cantos começaram e senti algo bom. Melismas melódicos que certamente tinham algo de gregorianos. Várias perguntas apareciam e eu guardei todas.
Ao final, esperei até que o último saísse da sala e então abordei aquele que orquestrava a cerimonia. Comecei:
- Com licença, me chamo Minoru. Esses textos que o senhor leu, essas cartas, são de quem para quem?
- Muito prazer Minoru! (um sorriso natalino) Estas cartas são do 8º patriarca, apenas um homem que viu que cada um estava falando uma coisa diferente sobre o budismo, então resolveu sistematiza-lo.
- Que engraçado, o livro que rege meu povo também teve o mesmo pressuposto para nascer, desde o primeiro cânon da bíblia com Macião. Mas me diga sobre essas imagens. Vocês as adoram? Como sabe que Deus é assim?
- Não não, ninguém sabe como Deus é. Acontece que para nos ajudar, criamos uma valorização sobre alguma figura meramente representativa. Nos ajuda na fé. Não é um ídolo, mas um carinho a algo que não conseguimos desenhar (risos).
- Poxa... assim também somos com a cruz... E este terço que você segura?
- Cada bolinha deste terço representa um de nós. Estamos ligados e tudo que eu fizer pode acarretar consequências a todas as outras bolinhas. Se estourar o barbante, todas caem. Vê também que elas são diferentes? Cada uma, é uma...
- Caramba... que lindo... E a salvação a que se referiu no culto? Como é isso? Salvar quem? Do que? Pra que?
- Acreditamos que se cada um pensasse no próximo como pensa em si, se o amasse e respeitasse em suas particularidades, o mundo estaria salvo... de nós. (o sorriso aqui fechava o olho dele) Então seria tão bom que ganharíamos a “eternidade como paraíso”. Não sabemos se existe céu, aqui me refiro a existirem condições de coabitação tão favoráveis que se vivêssemos para sempre, isso não seria um problema.
- Estou realmente apaixonado pelo que diz o seu povo, se o senhor entende que quem acredita nisso que acaba de me dizer, é budista, se o budismo é isso que me resumiu, me considere no mínimo um simpatizante apaixonado.
- (outro sorriso calmo e verdadeiro nasceu no velho) Você é jovem e interessado. É respeitoso e corajoso, se foi o seu cristo que o ensinou isso, diga-o que eu também o amo. Venha, tenho algo para você Minoru.
Recebi então um livro, o livro sagrado deles. Mas o maior presente foi a frase que mudaria minha vida para sempre. Talvez a frase mais bonita que já escutei nessas duas décadas e meia de vida. Ao me entregar o livro ele disse “É mais ou menos isso...”. Nossa! Eu pensei. É exatamente o oposto do que meu povo faz quando dá uma bíblia a alguém! Nós frequentemente entendemos que ali existe a verdade absoluta e embutimos no nosso presente a fala “isso sim está certo de verdade. Aqui está a verdade correta e todo o resto está errado. Molde-se ao meu padrão porque só assim serás salvo. E faça isso logo!” O velho não... ele disse “é mais ou menos isso...”. Nessa fresta que ele deixou aberta passa o mundo inteiro, passam todas as pessoas sem subjugar ninguém. Nessa fresta ele deixa a própria crença suscetível ao erro. Entende que ele não é perfeito e convida o mundo para caminhar Ao Lado. Posso falar uma noite inteira desse “É mais ou menos isso”...
- (aqui as lágrimas já me escorriam à dar vexame) Prometo que é a última pergunta: Me explique por favor essas frutas. São oferendas? A quem? A troco de quê?
- (o terceiro sorriso do velho parecia me abraçar) Minoru, sua avó gostava de mexericas né? Sempre as comia... Colocamos aqui apenas para lembrar dela... Um agrado silencioso, uma homenagem saudosa, contida e nostálgica. Aliás, o culto acabou. Vamos, apanhe as mexericas e vamos come-las! Podemos sentar naquela sombra...
E assim terminou a tarde, com algumas mexericas, uma sombra e um apaixonado chorando nos ombros de um velho.
Brilhante, estou encantada!Eu admiro muito a forma como você escreve e como se dispõe a interpretar e conhecer as situações vivenciadas por você através do filtro da graça.
ResponderExcluirGostei pacas! É como a moça acima (Lili?) bem disse: vc usa o "filtro da Graça" e isso faz toda a diferença!!!
ResponderExcluirAdorei sua historia. Desculpe se for muita intromissão de minha parte, mas como admirador do budismo e bibliômano, não resisti em fazer duas perguntas: que templo é esse das fotos? Qual o nome do livro com o qual o monge te presenteou?
ResponderExcluirAmigo, este tempo fica em Itaquera- grande SP, o lider se chamava Akio e o livro é a história do Budismo. (por não ser um nome muito específico, faço questão de chegar em casa e te mandar a editora e td mais!). Fui num domingo de manhã, acredito que as reuniões aconteçam sempre neste horário, além de outros.
ResponderExcluirMuito obrigado pelo carinho!!!!
Meu Deus cara! Que lindo, perfeito... muito forte! Chorei muito... choro do bem... que delícia de texto, vou passar o dia lendo e relendo... *-*
ResponderExcluirStephanie Zuma Lacerda
Blog: Saída da Caverna
tephizuma.blogspot.com
Que lindo e sensível.Você consegue tirar de todo detalhe de sua vida para expor a graça de Deus! Muito lindo Minoru, que Deus lhe conserve sensível sempre! bjooo
ResponderExcluirCara, que bonito isso...
ResponderExcluirGedeon Freire de Alencar Minoru Raphael, parabéns pela lição de respeito ao diferente. Tem uma história missionária clássica que gosto de aplica-la em minhas aula de antropologia. Duas viuvas vão ao cemitério cuidar dos tumulos de seus maridos. Uma é budista, outra cristã. Lado ao lado, a cristã ao ver a oferenda de alimentos que a budista coloca no tumulo lhe pergunta: Quando seu marido virá comer esse alimento? Ao que a budista lhe responde: Quando o seu vier cheirar suas flores!
ResponderExcluirChorei.
ResponderExcluirCaramba.. muito obrigado… como eu tô feliz…
ResponderExcluirParabéns pela visão que tem do mundo que te cerca.
ResponderExcluirAgradeço por ter compartilhado a experiência. Foi muito útil para algumas vidas. E para a minha.
ResponderExcluirAbraço.
"...Olhos brancos que os procuravam e os viam pela primeira vez também: Os olhos arregalados descobriam e deixavam descobrir uma outra humanidade."
ResponderExcluirMinha esposa leu isso e soltou essa:
ResponderExcluir"É muito bonito,
muito sábio!
Mexiricas douradas para homenagear em silêncio
numa tarde triste e melancólica,
repleto de singeleza,
..."é mais ou menos isso"!!!
A vida também pode ser vista desse prisma:
podemos seguir com calma, saber com calma
eu também preciso aprender... dar passos silenciosos numa tarde melancólica
preciso desapreder ser tão fatal...."
Minoru, tenho preferido rir nos últimos tempos. Chove muito lá fora e meu lago interior parece o naufrágio do Pi com o tigre junto. Só li seu texto hoje, domingo, quase duas da tarde, e só o li porque o Sérgio o postou no pavablog por indicação do Marcio.
ResponderExcluirMinoru, queria muito abraçá-lo hoje, também derramado em lágrimas e agradecer porque seu texto me trouxe paz na tormenta e luz em trevas de dor. Finalmente, houve beleza e alegria em minhas lágrimas e sou grato por você ter ousado ir além, escutar o outro e me trazer agora uma alegria esperançosa.
Além do que, adoro mexericas.
S-e-n-s-a-c-i-o-n-a-l!
ResponderExcluirNossa Minoru, parabéns pelo texto, e por alegrar meu dia com suas palavras. Elas serviram como um refrigério num dia de angústia.
ResponderExcluirVocê é sensacional. Continue assim!
Lindo texto!
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