O Espertão, a Descarga e um Embate Filosófico pela Paz



 Estávamos atrasados pro cinema, mas mesmo assim eu corri pro banheiro. Lá, quatro crianças na frente de um mictório ouviam atentamente a explicação do gordinho, que por sinal se parecia muito comigo aos 9 anos. Ele dizia: É claro que a descarga não tem botão, isso é moderno como a Siri do Iphone. Você tem de se aproximar e falar “descarga!”, aí ela funciona. Viram?”. A descarga realmente foi acionada e a plateia quase bateu palmas. Confesso que levei alguns segundos para entender que a descarga foi acionada pela aproximação do menino junto ao sensor e não pelo que ele disse, mas é claro que eu não estraguei a palestra.
  Estou pensando naquele dia já há duas semanas e o que começou engraçado, passou a ser quase uma provocação existencial. Acompanhe o meu raciocínio: o que o menino fez foi inventar uma explicação para algo desconhecido e admitir isso como Verdade. Em seguida ele passou adiante a certeza que tinha, sem repensar ou por à prova em nenhum momento -vocês tinham que ver a segurança e autoridade com que ele falava aos outros quatro pequenos-. E eu creio que ele não estava querendo enganar ninguém. Seus olhos eram de quem realmente acreditava no que estava falando, tanto é que eu levei um tempinho para entender a verdade e mesmo assim não ousei comentar sobre o sensor de presença da descarga.
  Agora pense, quantas vezes não fui eu “o espertalhão”? Quantas coisas eu creio hoje, prego por aí, mas nunca coloquei à prova? Aquelas crianças saíram do banheiro completamente enganadas, quantas pessoas já não saíram assim depois de conversarem comigo? Óbvio que a questão da descarga não é de nenhum risco, mas a mesma lógica pode acontecer com assuntos muito maiores, como relacionamentos, política e religião, pra dizer só alguns... Trata-se de alguém que interpretou algo deliberadamente, gerou uma “verdade” e espalhou aos outros por sua autoridade ou credibilidade. É a lógica das estórias judaicas passadas aos Talmidim por seus rabinos, por exemplo. O interessante é que a descarga foi acionada mesmo! (Claro, ele se aproximava do sensor para dar o comando por voz) Na cabeça de alguém sem informação mínima no assunto aquilo era um fato completamente legítimo, comprovado diante de seus olhos! Talvez seja assim também que as superstições nasçam, assim como muitos acontecimentos “sagrados” e até as próprias crenças. Tem gente que chama de fé. Outro exemplo: foi exatamente se aproveitando deste mesmo mecanismo que, em 1897, o mágico Houdini foi considerado paranormal pela classe espírita de Londres... Entendem o meu ponto? Outra coisa tão ruim quanto é pensar “quantas vezes não fui eu um daqueles pequenos que ouviam e prestavam a maior atenção?... Em quantas descargas acionadas por comando de voz eu ainda acredito até hoje, sem saber que estou completamente enganado?...

  Antes de me perder no relativismo absoluto, findo este processo por puro cansaço. É uma linha infinita de perguntas desconfortáveis e sem respostas. Mas sinto duas diferenças em mim: Primeiro, estou mais tolerante com os diferentes... Se estamos todos sujeitos ao ENGANO TOTAL, não faz sentido recriminar quem discorda. Toda fé, credo, gosto ou superstição deve ser respeitada como uma preferência. A lógica do garoto também conseguiu acionar a descarga! E segundo, me vejo mais do que nunca, com uma preguiça gigantesca de conversar com pessoas muito convictas sobre qualquer coisa. Seja um “louco por ti Corinthians” ou um vegano me impedindo de comer a minha picanha. Alguém louco por saúde ou por feminismo. Todo radicalismo dedura uma prepotência para a qual meu saco não está mais disponível.
 Entre a certeza e a vitória, fiquei com o poema...

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